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Para a surpresa de ninguém


Conforme o número de brasileiros infectados pelo Covid-19 aumenta, a popularidade do presidente cai, e não é preciso imprensa ou órgãos de pesquisa para se perceber isso (até porque muitos hoje só se informam por Whatsapp e Facebook); os panelaços recentes, com participação dos bairros mais ricos de São Paulo, por exemplo, seria algo inimaginável meses atrás. A questão que fica, no entanto, é: o que mudou no comportamento do presidente para que até seus eleitores tenham começado a mudar de opinião?

Desde que a pandemia do Coronavirus começou a dar os primeiros sinais, o comportamento de Bolsonaro tem sido um manual de como não agir em situações como essa. Aparentemente mais preocupado em dar satisfações aos grupos empresariais que o apoiam, o presidente se manifestou contra a proibição de público nos jogos de futebol, depois contra o fechamento do comércio e igrejas, sem contar ter participado de uma manifestação mesmo depois de vários membros de sua comitiva, que o acompanharam em uma viagem aos EUA, terem contraído a doença (até o momento, mais de vinte pessoas deste grupo já forma diagnosticadas com o Covid-19). Travou uma guerra contra os governadores que tomaram medidas enérgicas contra a crise atual, e se desentendeu até com seu próprio ministro da saúde. Tudo isso sem contar a “ajuda” tradicional de seus apoiadores mais próximos: Seu filho Eduardo causou toda uma confusão com a China depois de mais uma declaração absurda, o outro filho, Flávio, compartilhou desinformação ao postar um vídeo de Drauzio Varella sobre a doença, vídeo gravado em Janeiro, como se fosse sobre o atual momento (vídeo apagado pelo próprio Twitter, como prática da empresa de limitar a propagação de fake news e desinformação), além de Olavo de Carvalho, que fez um vídeo falando que a pandemia é uma mentira (também apagado pelo YouTube, pelo mesmo motivo, limitar circulação de fake news).

Tudo isso já bastaria para qualquer cidadão de bom senso, principalmente diante dessa situação que vivermos, ficar indignado. No entanto, e este é o ponto em que quero chegar, a postura e o comportamento do presidente continua sendo exatamente a mesmo de sempre, o que nunca incomodou muitos de seus eleitores.

Desde que surgiu para o cenário nacional como um participante recorrente do programa CQC, Bolsonaro adotou como marca as declarações abjetas em relação a homossexuais, mulheres, ditadura militar e etc. Se definiu como o “anti politicamente correto”, aforismo moderno para o ato de ser insensível e mal-educado, e sua popularidade só cresceu, enquanto comentários machistas e homofóbicos eram convenientemente denominados de “polêmicas”. Esse cenário continuou durante as eleições, e continua até hoje, depois de eleito. A questão das queimadas na Amazônia é um bom exemplo. O roteiro foi igual ao que vemos hoje: os maiores especialistas do mundo de um lado, o presidente do outro, as campanhas virtuais de fake news, e as declarações absurdas, como a dos “globalistas” afrontando a soberania nacional ou a preocupação ambiental como uma forma de tentar impedir o crescimento econômico do país. Mesmo assim, o presidente continuou tendo enorme apoio. Daí a estranheza, portanto, que agora muitos dos que votaram nele se vejam incrédulos com seu comportamento.

Até que ponto negar a gravidade da atual pandemia não se assemelha a negar que houve tortura na ditadura brasileira ou homenagear Ulstra em público? Ou dizer que, caso se contamine, o problema é dele, com “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” (revista Playboy 2011) ? Ou acusar os governadores que estão seguindo as recomendações mundiais com acusar, sem provas, ONGs de terem iniciado os incêndios na Amazônia ? E mais tantos e tantos comentários que não valem a pena repetir. O presidente pode ser chamado de tudo, menos de inconsistente. Se divergem em tema, suas declarações se equivalem em nível (baixo). Então, o que mudou para elas terem começado a incomodar? Mudou porque agora são sobre um tema para o qual as pessoas não conseguem fechar os olhos.

Parte dos eleitores de Jair Bolsonaro não são apenas apoiadores, mas fiéis, que seguem absolutamente tudo que o presidente diz sem contestação. No entanto, acreditar que 100% dos que votaram nele correspondem a este grupo é fazer muito pouco do nosso próprio povo. Uma parcela considerável votou fechando os olhos, com mais ou menos esforço, para todos os absurdos praticados por ele, repetindo o mantra de que faziam isso por um bem maior. E antes que alguém me grite “era para tirar o PT”, é sempre bom lembrar que havia outros tantos candidatos, inclusive de direita, como Alckmin, Meirelles e Amoedo. Com o tempo, se tornará cada vez mais comum a retórica de que Bolsonaro foi um mal necessário no qual as pessoas foram obrigadas a votar por falta de opção. Isso não é verdade. Ele venceu no primeiro e no segundo turno. A questão não é a escolha da maior parte da população em não continuar com o antigo governo, mas de ter escolhido Bolsonaro para substituí-lo.

Se falta de educação, homofobia, machismo, preconceito, desrespeito pela história e pela ciência foram coisas que muitos conseguiram ignorar sem maiores problemas, com a questão da saúde pública é muito mais difícil brincar de “cego-surdo-mudo”. Hoje, a possível vítima não é mais um homossexual anônimo andando pela Avenida Paulista, ou um negro em alguma comunidade qualquer, nem uma árvore queimando a quilômetros de distância ou a família do Herzog, torturado e assassinado no DOI-COD em 1975. Ao contrário, a vítima pode ser qualquer um, independente da cor da pele ou classe social. Inclusive você ou eu. Bolsonaro conseguiu mexer com a única coisa capaz de acordar as pessoas desse estado de cegueira conveniente: o instinto de sobrevivência.

Apesar de tudo, isso é um bom sinal. Significa que há uma linha, um limite, que as pessoas não estão dispostas a cruzar. Em um mundo que caminhava para um individualismo absurdo, todo e qualquer sinal de solidariedade é bem vindo, e mesmo com as declarações surreais que ouvimos por aí, dá para perceber que a maioria dos brasileiros reconhece a gravidade do problema e está preocupado com as mortes que virão pela frente, independente de quantas serão ou quem serão as vítimas.

O comportamento do presidente é o mesmo de sempre, para a surpresa de ninguém. Só nos resta ouvir as autoridades sérias, lavar bem as mãos, e, principalmente, ficar em casa.

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